O último beijo



Era com certeza um dos piores dias da minha vida, apesar de tudo você ainda estava lá, do meu lado, tentando a qualquer custo me tirar um sorriso sequer; acabou não conseguindo, eu não tinha forças para sorrir, mamãe havia partido para nunca mais voltar e pensar no fato que nunca mais nos veríamos neste pequeno ponto pontinho azul me doía arduamente a alma; era impossível exibir alguma expressão de felicidade. Mas ela tentava, e insistia, e persistia tanto que acabei me alegrando um pouco para não frustrá-la depois de tanto trabalho.
"Adeus mamãe" dizia eu. "Ela está em um lugar bem melhor agora" disse ela. "Câncer é uma doença muito devastadora, pense o quanto ela sofreu e que agora todo esse sofrimento acabou, mesmo ela tendo que abdicar da convivência com os familiares. No final todo a sua dor acabou" continuou.
"Sim, ela era uma guerreira, persistiu até o fim, me disse que não queria me abandonar, mas não teve escolha". Não tocamos mais no assunto, ela sabia que isso não me fazia bem.
Não conseguia dormir, eram 03 horas da manhã e fui tomar um copo d'água. A fotografia de mamãe estava sobre a mesa, no mesmo porta-retrato que à dei de presente em seu aniversário. Era uma foto da família toda reunida com a frase "Você vai superar isso, te amamos!" (já havia sido diagnosticada com a doença, uma semana antes de seu aniversário). Lágrimas rolavam enquanto segurava o porta retrato. Acidentalmente o deixei cair, o vidro se partiu um pouco acima da palavra "superar"; algumas lágrimas caíram sobre a foto, abaixei e a peguei, limpei e fui até o quarto; abri o guarda roupa, escolhi o melhor terno que tinha e guardei a foto em seu bolso; fechei a porta e voltei para o quarto. Minha dor era silenciosa, a noite foi longa...
Observei Allana enquanto dormia (minha namorada). Poderia passar horas e mais horas olhando para ela, mas acho que nunca descobriria de onde veio garota tão fascinante. Sua existência me trazia um ar de esperança. Mamãe dizia que ela iria me trocar pelo primeiro homem que tivesse uma boa e que a quisesse mas isso acabou não acontecendo. Ela continuou comigo em todos os momentos, apesar de eu sempre esquecer o nosso aniversário de namoro ou adiar por conta do trabalho. Seu olhar me fazia renascer em uma primavera não existente outrora. Seu sorriso floria em mim um ritmo perfeito, acho que aos poucos eu havia encontrado "a metade do meu casco" (assim dizia mamãe). Era ela a quem eu amava, era a ela que eu queria por boa parte da minha vida (talvez pra sempre, mas isso o tempo diria depois).


Na manhã seguinte acordei com seus beijos, ainda estava tentando me fazer sorrir sem saber que já havia conseguido o feito, sou discreto. Aquele seu jeito me fazia perceber que a vida não era apenas uma pequena aventura em um pontinho azul solto em um universo de bilhões de anos. Um dia, ninguém se lembrará de nós, de nossa pequena passagem por esse pontinho solto no universo, ninguém se lembrará de mamãe, nem de Allana, nem do meu cachorro Phill e nem do vovô Thimoth. As lembranças pouco a pouco irão passando e no final tudo volta para aquela velha monotonia que rodeia nossas vidas; mas eu tinha a certeza que nunca esqueceria dela durante meus dias de vida, queria a ter conhecido antes, assim teria mais tempo de lembrar dos momentos perfeitos que vivi nessa pequena aventura.
Acendi dois cigarros, não costumava fumar, ainda pensava naquela velha mania de mamãe que me telefonava sempre que ouvia algum barulho estranho na casa. "É o encanamento" eu dizia. Mas hoje era diferente, o telefone não tocou. Olhava sua foto em meu terno; esperava o telefonema, nenhum barulho, nada...
Doía na alma aquele silêncio. Tinha medo daquele vazio me consumir. Fiquei naquele estado durante uns 20 minutos até que Allana adentrou o ambiente. Sorri e ela alegrou-se.
Era nosso aniversário de 7 meses de namoro, eu havia me lembrado por causa dos lembretes que havia colocada em meu celular e no bolso de meu terno. Resolvemos sair e fomos para o Plazza, um restaurante de cinco estrelas que se situava próximo à minha casa. Ela então começou a falar de quando conheceu mamãe, "PARE!" gritei. Todos ao redor olharam. Acabei me exaltando um pouco, não queria tocar no assunto. O vazio avançava. Ela apenas olhou para mim com espanto e eu acho que compreendeu que o assunto não me faria bem no momento. "Seu cabelo está lindo" disse. Aliás ele sempre esteve. Eu gosto do cabelo dela. Eu gosto da risada descontrolada dela. Eu gosto quando ela fica me olhando fixamente sem piscar os olhos. Eu gosto quando ela me bate mesmo sem motivos. Gosto quando ela chora vendo um filme de romance. Eu gosto quando ela me liga de madrugada perguntando como estou. Gosto do beijo dela. Eu gosto de acalmá-la quando diz que não aguenta mais sua chefe. Eu gosto de ser somente dela. Eu gosto do jeito como ela rir com minhas piadas sem graças. Gosto de quando seu cheiro fica exalando em minha camisa. Gosto quando fala em meu ouvido que me ama. Eu gosto dela, eu sempre vou gostar. Eu gosto do jeito de como ela me faz amá-la a cada detalhe, imperfeição, qualidade e jeitinho. Eu me sinto em total fascínio.
Pedi a conta e fomos embora, na volta para casa ela me deu um beijo, mas este era diferente dos outros, sentia algo a mais, mas não pude identificar o que era. Deixei-a em casa e voltei para minha residência. Lá fiquei pensando um pouco na vida, olhei meu telefone e tinha algumas mensagens não lidas dos amigos, estavam me mandando força. Não haviam ligações perdidas, a última foi de mamãe há quase 5 dias para dizer que o tratamento estava indo bem. "Ela não queria me preocupar, estava apenas se despedindo" pensei. Os dias sem ela me ligando todas as manhãs ainda doíam. Sentia como se as coisas não estivessem completas. Toda vez que o telefone toca eu penso que é ela. O silêncio me agride tão forte que os hematomas nunca irão se curar. Talvez o barco da minha vida ainda esteja virado. A agonia prolongava...
No dia seguinte fui no shopping center. Na loja de presentes, comprei a aliança de ouro que estava estampada na vitrine da loja. Sai correndo e fui para a casa de Allana, chegando lá bati na porta, demorou uns 20 segundos; estranho, ela não costumava demorar, ainda mais quando era eu quem estava à porta (ela reconhecia o som dos toques na porta). Repeti a ação e nada. Uma vizinha do lado saiu de casa e disse que Allana havia se mudado. "Não disse para onde iria?" perguntei, "não" ela disse. Era muito estranho, ela não iria embora sem deixar uma mensagem sequer, nenhuma ligação, nada...
Voltei para casa e fiquei esperando incessantemente por sua ligação enquanto ouvia Legião Urbana no rádio, seu telefone não atendia, estava sempre desligado. Esperava e esperava e essa esperança de uma ligação nunca cessava. Eu tinha motivos reais para esperar, eu a amava e não poderia ver tudo se desfazer assim. Nunca precisei tanto de alguém como precisava dela; nunca tinha desejado tanto ver aquele sorriso de novo um dia. Eu nunca mais eu mesmo depois dela. Pareço uma criança confusa que não sabe para onde ir, ainda fragilizado com sua ida. Chego a pensar se foi minha culpa, se ele meu lado repulsivo acabou contribuindo para a sua partida, é, pode ter sido, mas isto nunca saberei.
A verdade é que acabei esperando por sua ligação durante dias, meses, anos e anos. Minha barba branca já descia pelo meu queixo e eu já sem esperanças não acreditava que um dia ainda ligaria.
Então em um dia desses de chuva, estava eu sentado em meu quarto ouvindo o barulho da chuva lá fora. Estava tudo muito estranho. O mundo estava cheio de idiotas como eu. Inesperadamente meu telefone tocou. Era você! Eu estava lisonjeado e ainda surpreso por ainda se lembrar deste número. Atendi, ela suspirou, disse "Eu quero que você siga em frente, você é tão forte quanto sua mãe, você vai superar isso, te amo!". Então desligou, uma ligação de 0:45 segundos que me fez pensar no que queria me dizer; fiquei pensando e pensando e cheguei à conclusão de que não havia conclusão, nada estava acabado ainda.
Peguei meu carro e fui na casa de um amigo, Johnny, um expert em informática. Ele conseguiu rastrear a ligação, vinha de São Francisco (Califórnia). Dirigi até a cidade, Johnny me dizia por onde deveria ir, cheguei então na suposta casa de Allana. Era uma casinha, muito pequena por sinal. Bati à porta e uma senhora muito agradável me atendeu. "Onde está Allana?" perguntei, "Allana? Ela faleceu hoje pela manhã, não resistiu ao câncer".
Aquelas palavras atravessaram-me por inteiro, perfuraram meu coração e saíram, deixando um grande buraco em meu corpo. Ela disse que o enterro foi pela tarde. Não pude me despedir; a culpa me dava nos nervos, aquele sentimento horrível não estava afim de ir embora, não aguentava essa dor.
Peguei o carro, voltei para casa e me tranquei no quarto, de lá não saí mais, durante anos fiquei lá. Envelheci ali mesmo, meus cabelos ficaram brancos e, logo após, caíram; não recebia mais visitas, tudo o que tinha era aquele velho terno com a foto de mamãe e um lembrete de aniversário de namoro; meu telefone notificou, faríamos 50 anos de namoro neste dia. Parabéns para nós amor!


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